Esse texto foi publicado em 2009 por Daniel Duclos e apesar de ter aproximadamente 5 anos condiz muito com a nossa realidade. Muitíssimo interessante.
A sociedade holandesa tem dois pilares muito claros: liberdade de
expressão e igualdade. Claro, quando a teoria entra em prática, vários
problemas acontecem, e há censura, e há desigualdade, em alguma medida,
mas esses ideais servem como norte na bússola social holandesa.
Um porteiro aqui na Holanda não se acha inferior a um gerente. Um
instalador de cortinas tem tanto valor quanto um professor doutor. Todos
trabalham, levam suas vidas, e uma profissão é tão digna quanto outra.
Fora do expediente, nada impede de sentarem-se todos no mesmo bar e
tomarem suas Heinekens juntos. Ninguém olha pra baixo e ninguém olha por
cima. A profissão não define o valor da pessoa – trabalho honesto e
duro é trabalho honesto e duro, seja cavando fossas na rua, seja
digitando numa planilha em um escritório com ar condicionado. Um precisa
do outro e todos dependem de todos. Claro que profissões mais
especializadas pagam mais. A questão não é essa. A questão é “você
ganhar mais porque tem uma profissão especializada não te torna melhor
que ninguém”.
Profissões especializadas pagam mais, mas não muito mais. Igualdade
social significa menor distância social: todos se encontram no meio. Não
há muito baixo, mas também não há muito alto. Um lixeiro não ganha
muito menos do que um analista de sistemas. O salário mínimo é de 1300
euros/mês. Um bom salário de profissão especializada, é uns 3500, 4000
euros/mês. E ganhar mais do que alguém não torna o alguém teu
subalterno: o porteiro não toma ordens de você só porque você é gerente
de RH. Aliás, ordens são muito mal vistas. Chegar dando ordens abreviará
seu comando. Todos ali estão em um time, do qual você faz parte tanto
quanto os outros (mesmo que seu trabalho dentro do time seja de tomar
decisões).
Esses conceitos são basicamente inversos aos conceitos da sociedade
brasileira, fundada na profunda desigualdade. Entre brasileiros que aqui
vêm para trabalhar e morar é comum – há exceções - estranharem serem
olhados no nível dos olhos por todos – chefe não te olha de cima, o
garçom não te olha de baixo. Quando dão ordens ou ignoram socialmente
quem tem profissão menos especializadas do que a sua, ficam confusos ao
encontrar de volta hostilidade em vez de subserviência. Ficam ainda mais
confusos quando o chefe não dá ordens – o que fazer, agora?
Os salários pagos para profissão especializada no Brasil conseguem
tranquilamente contratar ao menos uma faxineira diarista, quando não uma
empregada full time. Os salários pagos à mesma profissão aqui não são
suficientes pra esse luxo, e é preciso limpar o banheiro sem ajuda – e
mesmo que pague (bem mais do que pagaria no Brasil) a um ajudante, ele
não ficará o dia todo a te seguir limpando cada poerinha sua, servindo
cafézinho. Eles vêm, dão uma ajeitada e vão-se a cuidar de suas vidas
fora do trabalho, tanto quanto você. De repente, a ficha do que
realmente significa igualdade cai:
todos se encontram no meio, e
pra quem estava no Brasil na parte de cima, encontrar-se no meio quer
dizer descer de um pedestal que julgavam direito inquestionável (seja
porque “estudaram mais” ou “meu pai trabalhou duro e saiu do nada” ou
qualquer outra justificativa pra desigualdade).
Porém, a igualdade social holandesa tem um outro efeito que é muito
atraente pra quem vem da sociedade profundamente desigual do Brasil: a
relativa segurança. É inquestionável que a sociedade holandesa é menos
violenta do que a brasileira. Claro que aqui há violência – pessoas são
assassinadas, há roubos. Estou fazendo uma comparação, e menos violenta
não quer dizer “não violenta”.
O curioso é que aqueles brasileiros que queixam-se amargamente de
limpar o próprio banheiro, elogiam incansavelmente a possibilidade de
andar à noite sem medo pelas ruas, sem enxergar a relação entre as duas
coisas. Violência social não é fruto de pobreza. Violência social é
fruto de desigualdade social. A sociedade holandesa é relativamente
pacífica não porque é rica, não porque é “primeiro mundo”, não porque os
holandeses tenham alguma superioridade moral, cultural ou genética
sobre os brasileiros, mas porque a sociedade deles tem pouca
desigualdade. Há uma relação direta entre a classe média holandesa
limpar seu próprio banheiro e poder abrir um Mac Book de 1400 euros no
ônibus sem medo.
Eu, pessoalmente, acho excelente os dois efeitos. Primeiro porque
acredito firmemente que a profissão de alguém não têm qualquer relação
com o valor pessoal. O fato de ter “estudado mais”, ter doutorado, ou
gerenciar uma equipe não te torna pessoalmente melhor que ninguém, sinto
muito. Não enxergo a superioridade moral de um trabalho honesto sobre
outro, não importa qual seja. Por trabalho honesto não quero dizer
“dentro da lei” - não considero honesto matar, roubar, espalhar veneno,
explorar ingenuidade alheia, espalhar ódio e mentira, não me importa se
seja legalizado ou não. O quanto você estudou pode te dar direito a um
salário maior – mas não te torna superior a quem não tenha estudado (por
opção, ou por falta dela). Quem seu pai é ou foi não quer dizer nada
sobre quem você é. E nada, meu amigo, nada te dá o direito de ser cuzão.
Um doutor que é arrogante e desonesto tem menos valor do que qualquer
garçom que trata direito as pessoas e não trapaceia ninguém. Profissão
não tem relação com valor pessoal.
Não gosto mais do que qualquer um de limpar banheiro. Ninguém gosta –
nem as faxineiras no Brasil, obviamente. Também não gosto de ir ao
médico fazer exames. Mas é parte da vida, e um preço que pago pela
saúde. Limpar o banheiro é um preço a pagar pela saúde social. E um
preço que acho bastante barato, na verdade.
Texto na íntegra: http://blog.daniduc.net/2009/09/14/da-relacao-direta-entre-ter-de-limpar-seu-banheiro-voce-mesmo-e-poder-abrir-sem-medo-um-mac-book-no-onibus/